Podemos e até devemos entender os mecanismos do que nos ferem, mas isso não garante que será fácil lidar com as situações, com o medos e traumas. Apenas passamos a conhecer a cara do bicho no armário.
Meu pai oprimia minha mãe. Ela cresceu convencida de não ser ninguém no mundo
e de não ter ninguém por ela. Ela não foi criada por seus pais, por sua família,
mas por outras pessoas a quem servia como escrava branca, como a pobrezinha órfã
que fora acolhida. Quando se juntou com meu pai ela deve ter visto nele a chance
de ser alguém, de ter um nome, de ter uma casa que seria o mais próximo "de sua",
na vida inteira que ela não tinha nada. E ele, de educação absolutamente machista e mais alguma coisa,
se aumentou sobre a fraqueza dela. Durante toda a minha vida eu o vi esmigalhando a
autoestima dela, dizendo coisas que a feriam de morte, de uma morte lenta e
torturante, dia após dia, ofensa após ofensa. Nos primeiros anos ela brigava,
respondia às ofensas dizendo qualquer coisa somente para não ter que engolir o
desaforo e para não parecer que ele tinha razão. Depois foi deixando de reagir,
foi se calando e aceitando como verdades incontestáveis todas as
desclassificações que ele impunha a ela. Então ela se tornou a indigente, a sem
nome, sem família, sem teto, sem educação, sem profissão, aquela que nem os pais
quiseram ou suportaram, aquela que ele salvou do prostíbulo e colocou em uma
casa de barro batido, grávida e dormindo sobre papelão.
Vi minha mãe aceitando e internalizando todas essas coisas e morrendo aos
pouquinhos por dentro e por fora, sem mais enfrentá-lo, sem contrariar o que
quer que ele dissesse, como se, enfim, fosse melhor ter aquilo como verdade do
que não ter verdade nenhuma. Ela comia o que ele comprava, ela vestia o que os
outros não queriam mais vestir, ela dava pra mim a única porção de comida que
havia e fitava os olhos no horizonte. Mas eu nunca soube o que havia no
horizonte que ela olhava. Não me lembro de que ela me falasse bem da vida, de
que o futuro seria bom, mas sempre me dizia que eu tinha que estudar para ser
alguém na vida. E ela me alfabetizou, me ensinou contar, a escrever as primeiras
palavras, a ler as placas na rua, e fazia desenhos engraçados para eu colorir.
Lembro que eram pessoas, mulheres, talvez ela e eu, de vestido
em forma de triângulo, e casas com flores na frente, e sempre tinha uma pipa no
céu ou uma mala em alguma situação (não sei por que me lembro de ter uma
mala, e talvez por isso eu viva com as malas prontas até hoje).
E falar da minha mãe assim, de como eu via e vejo a relação da minha mãe com
o mundo, o mundo a que ela teve direito, é para falar do medo que eu sinto de
enfrentar pessoas que me diminuem, com as quais tenho relações de dependência,
de alguma forma.
Eu enfrentava meu pai, a vida toda eu acho que fiz isso, briguei, faltei com
o respeito filial porque eu achava que ele não merecia ser respeitado (e por
respeitado leia-se temido). Eu atravessei entre meu pai e minha mãe em inúmeras
brigas dos dois, e sempre, sempre defendendo ela, sempre, sempre me colocando
“do tamanho” dele.
Mas quando chegou a minha vez de me relacionar com a dependência (financeira,
emocional) de alguém eu não tive voz, nem força, nem amor próprio, nem estudo,
nem família, nem teto, e fiquei igual à minha mãe. E foi assim com aquele a quem
chamei de marido, quando repeti a história da minha mãe sem perceber, aceitando
a mão estendida de alguém que vinha me salvar da dureza da vida. Não da
prostituição, nem das noites no relento como ela, mas da dureza de viver perdida
dentro de mim mesma, numa noite escura que nunca terminava, e de catar as
migalhas de um salário muito pequeno para uma despesa grande de manter sozinha
uma casa e uma filha.
E como minha mãe eu passei a ser nada, a ser ninguém, eu perdi meu nome,
minha coragem, perdi até meu juízo, o comando de mim mesma, dia após dia, de uma
forma sorrateira e silenciosa fui me descaracterizando e me tornando outra
coisa. Até que eu já não sabia mais quem eu era, e só me restava ser o que
diziam que eu era, e essa não era uma pessoa bonita, essa não valia a pena.
Daí, depois de vencer esse abismo emocional, de recuperar minha identidade,
eu ainda me deparo com pessoas que, por algum motivo, me tratam com desprezo numa
situação em que fatalmente dependo delas, e todo esse mecanismo de medo se
aciona. E vem a sensação de pavor, de pânico, de querer fugir, de evitação. E a
absoluta falta de coragem de dizer e mostrar e provar quem EU SOU, a absurda
falta de força e até de palavras pra responder à altura quando me ofendem.
Por isso estou assim agora, nesse momento, passando por esse umbral
lamacento, sentindo um vazio indescritível dentro de mim, como se eu mesma
tivesse ido embora, como fica uma casa depois que uma família grande se muda pra outro lugar. É como se eu estivesse escorregando para dentro de um buraco e
tentando me agarrar nas pessoas que conheço, me segurar, pedir socorro, mas
todas estão tão distantes, não me ouvem, não entendem, não percebem que estou
caindo no abismo, estão muito, totalmente ocupadas. E me viro para todos os
lados, percorro toda a lista de contatos do telefone sem discar para ninguém, e
olho o dia inteiro para os nomes online no chat do facebook e não há quem possa
ter contato com essa minha fraqueza. Não há quem poderia aceitar sem julgar essa
minha verdade.
E esse grito de socorro fica sufocado na garganta, num choro abafado e
entrecortado por pensamentos de recriminação, porque é um absurdo eu me permitir
estar assim mais uma vez, depois de tanto tempo, depois de tantas coisas, depois
de ter tanta certeza do nunca mais.
Lá, no tempo futuro, está esse homem (meu chefe) e eu terei de enfrentá-lo, terei de ver
em seus olhos o meu estado de dependência de um emprego, de um salário, terei de
ver o quanto ele me despreza, me desvaloriza, terei de estar na situação de
permitir que ele me humilhe se assim o quiser. E terei de passar por isso.
só faltou um final feliz. é possivel superar sempre.......e esse medo que muitas vezes sentimos, vindo como uma sombra de algo que nos traumatizou no passado, esse medo violento que nos aprisiona sem correntes, esse mal pode ser vencido sim, dia a pos dia, com pensamentos positivos e açao; agir, fazer algo pra nao ser totalmente dependente. emprego? sempre vai existir uma segunda opçao, nada esta perdido, vamos em frente, começo agora, apartir de agora sou e sempre serei livre.....
ResponderExcluirO final feliz para minha mãe não é mais possível, pelo menos nesse plano espiritual. Quero muito que ela esteja bem e feliz agora, mas isso é assunto para o Altíssimo. O meu final feliz eu estou construindo, a cada dia como você diz, matando um dragão de cada vez, mesmo quando eles vêm em bando. Alguém, há muito tempo atrás, deve ter publicado num jornal que eu dava abrigo para traumas porque eles vivem surgindo de todas as partes, rsrsrs. Eu sei que é a minha peculiar forma de encarar as coisas, estou trabalhando nesse projeto faz tempo. Estou pensando, estou pensando, estou pensando em uma forma de não ser empregada, de ter outra forma de renda, estou pensando. Uma vez eu senti o gosto dessa liberdade, acho que por um mês mais ou menos, que foi o tempo que durou o efeito de uma oficina terapêutica que fiz. Era maravilhoso, eu me sentia grande, leve, como se voasse, como se pudesse fazer qualquer coisa que eu quisesse. Vigiei, mas o danado do ego me raptou de volta. Tem nada, não. Agora eu já sei o caminho, só preciso de (mais) coragem e dedicação. Eu não sei quem é você, mas, gratidão pela sua visita e seu comentário. Foi especial. Não me esquecerei. Um abraço.
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